terça-feira, 1 de março de 2011

Estava prometido

Não são necessárias grandes introduções. Na passada sexta-feira, no Auditório Municipal da Póvoa do Varzim, durante a 7ª Mesa das Correntes d'Escritas, cujo tema era "A Obra que faço é minha", quando a minha vez de falar chegou aquilo que eu disse foi o texto que se segue.



A obra que faço é minha, claro. Mas essa nem sequer é a questão mais relevante.


Não tenho a certeza, mas penso que o meu primeiro momento de criação literária aconteceu quando eu tinha dois anos. Não me lembro de nada, claro. Os meus pais é que contam essa história. A história da galinha, que entre os mais pequenos, em escolas e bibliotecas, eu já devo ter contado umas quatrocentas vezes. Até porque foi esse episódio que esteve na origem do meu primeiro livro para crianças, “A Noite dos Animais Inventados”. Poucas vezes contei a história da galinha para um público adulto. Mas agora esse momento chegou.


Por volta dos meus dois anos, tive uma galinha imaginária. Creio que toda a gente, a um determinado instante da infância, terá tido amigos imaginários; e a meu ver, o facto de eu ter imaginado um animal que pouco interage com as pessoas e não faz mais do que bicar milho e pôr ovos revela, ao contrário do que possa parecer, a pouca imaginação que eu tinha então. Os meus pais contam que durante umas semanas a galinha me acompanhou para todo o lado, debaixo do braço (que segurava em nada), como um animal de estimação real. Se alguém experimentava sentar-se numa cadeira, eu gritava que não podia fazê-lo porque estava ali a galinha. Os meus pais contam que de início acharam graça. Depois ficaram preocupados mas, sobretudo, cansados por haver lá em casa um animal a estorvar pelas divisões que ninguém via a não ser eu. Por isso fizeram o que fizeram. Uma manhã saímos de casa para apanhar um autocarro. Eles iam trabalhar, eu ia para a creche. Quando estávamos na paragem à espera do autocarro – e lá estava eu com a galinha debaixo do braço – os meus pais disseram-me: «David, neste autocarro não podem entrar galinhas.» Nem eles nem eu poderemos alguma vez saber o que me passou pela cabeça naquele instante. Ainda assim, contam os meus pais, eu ouvi o que eles disseram e de seguida baixei-me para pousar a galinha no chão da paragem. O autocarro chegou. Entrámos. Contam os meus pais que eu me cheguei à janela para dizer adeus à galinha. Contam também que nunca mais vi a galinha.


O interessante aqui não é, claro, eu, com dois anos apenas, ter imaginado uma galinha, mas sim tê-la abandonado porque de outra forma não saberia ver-me livre dela. Por alguma razão o verbo desimaginar não faz parte do nosso léxico. A imaginação, sobretudo a imaginação das crianças, ao contrário do que se possa pensar, orienta-se por regras firmes e tem limites intransponíveis. Mais interessante ainda é o facto de os meus pais terem ajudado a ver-me livre da galinha. Sem eles, a história não teria uma conclusão e como tal não seria sequer uma história.


E a partir daqui, se acharem que vos serve de alguma coisa, sempre que eu disser “galinha”, quero que pensem “livro” (não tanto enquanto objecto, mas como texto ou narrativa ou conto ou romance) e sempre que eu disser “os meus pais” pensem “o leitor”, com as devidas alterações de artigos e verbos associados.


A galinha é minha. Fui eu que a inventei, fui eu o primeiro que a pensou. Mas a verdade é que sem os meus pais a galinha seria apenas uma invenção da minha cabeça, perdida no meio de outros pensamentos e de outras brincadeiras, desconhecida para todos menos para mim, que, mais cedo do que tarde, acabaria por esquecê-la completamente. Foram os meus pais, no momento em que permitiram que um elemento da minha imaginação se metesse na deles, quem deu à galinha lugar entre as coisas da realidade, um lugar que era, claro, diferente daquele que eu lhe havia atribuído. Eu via na galinha uma companhia. Os meus pais encontraram nela primeiro um motivo para sorrir, depois um aborrecimento e um estorvo e por fim até um problema. Porque há infinitas maneiras de se olhar para uma galinha. Sobretudo para uma galinha imaginária. Mas mais ainda: foi só através da imaginação dos meus pais que eu resolvi o destino à galinha. A galinha existia e, sim, era minha, mas os meus pais deram-lhe significado quando decidiram interferir nos acontecimentos com os seus próprios pensamentos. Podiam não ter interferido, essa opção existe sempre, podiam ter dito: “David, essa galinha não existe, acabou-se a brincadeira”, como quem termina a leitura de um livro antes da última página. (E atenção: o jogo apenas funciona num sentido, quando eu digo “livro” não quero que pensem “galinha”, quero que pensem “livro”)


E depois, como se tudo isso não bastasse, foram os meus pais que guardaram na memória a minha galinha. Eu tinha apenas dois anos e por isso esqueci-a. Talvez no momento em que saí do autocarro naquela manhã já a tivesse esquecido. Mas eles lembraram-se sempre, até ao dia em que me contaram a sua história pela primeira vez. E é possível que a história que eles me contaram não seja exactamente a história da minha galinha, mas isso, para mim, nunca foi nem será um problema.


A verdade por trás desta história define aquilo que para mim é literatura. A literatura é um diálogo. A primeira palavra é minha e será sempre minha até ao final da conversa, mas depois existe alguém que responde. Se não houver ninguém a responder, pouco importa se a primeira palavra é minha ou não.

1 comentário:

  1. Aplaudo! Gostei muito do que li, pelo que foi dito e pelas várias questões, que me suscita. Boa lição, de vida...

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