segunda-feira, 25 de abril de 2011

Notas avulsas

Último dia de antibiótico e sinto-me quase em forma outra vez. De modo que regresso ao trabalho. Tudo o que tinha pensado fazer nestas últimas duas semanas ou não foi feito ou foi feito a meio-gás.

Ainda em relação ao lançamento de A MALA ASSOMBRADA, agradeço a todos os que apareceram, os que enviaram mensagens ou telefonaram. As vossas palavras fizeram-me bem. E agradeço também aos blogs, sites, jornais, revistas e bocas que anunciaram o lançamento e apregoaram a presença deste novo livro nas livraria.

Entretanto, na imprensa, as novidades são: crítica do Miguel Real no Jornal de Letras ao DEIXEM FALAR AS PEDRAS; artigo na NS (revista de sábado do Diário de Notícias) sobre os hábitos e manias dos escritores, entre eles eu.

Amanhã sigo para Viana do Castelo, onde vou estar, até quinta-feira, a fazer oficinas de escrita criativa e a falar com os mais pequenos sobre livros, escrita, imaginação.

E aproveito para lembrar que na quinta-feira começa a Feira do Livro de Lisboa e eu gosto da Feira e da multidão que a povoa e dos autores sentados ao sol à espera de uma página onde rabiscar uma dedicatória e dos livros, claro. As minhas datas para autógrafos na Feira já estão na Agenda (no cimo desta página). E também para um debate sobre o Balanço Editorial do último ano, no qual irei participar.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Desejo secreto: quero que as crianças não consigam dormir à noite por causa de A MALA ASSOMBRADA

A MALA ASSOMBRADA está nas livrarias, pode ser comprado e lido. Quero muito que seja lido. E, de entre todas as leituras possíveis da história, a que mais me interessa é aquela que provoque o medo no leitor. Quero assustar as crianças.

O João Lemos, eu, a Inês Mourão (da Editorial Presença) e o Rui Zink.

Ontem, o lançamento deixou-me feliz. Havia pessoas vindas de vários lugares e tempos da minha vida. De alguma forma, fez muito sentido vê-las assim, todas de uma vez, todas reunidas. Havia também pessoas que me conhecem mas que eu não conheço, leitores de outros livros que escrevi. É bom saber que confiam em mim o suficiente para virem celebrar comigo um livro que ainda não leram.

O Rui Zink falou sobre o livro, dissecou-o, atravessou os principais temas que aborda e depois atirou-se aos detalhes do texto e da ilustração. Uns minutos depois, eu expliquei os motivos que me levaram a convidá-lo para apresentar A MALA ASSOMBRADA. Quando eu tinha quinze anos, vi pela primeira vez A Noite da Má Língua. Pareceu-me hilariante, embora não percebesse metade das piadas que eles faziam, e quis saber quem eram aquelas pessoas. Descobri que dois eram escritores e que um desses escritores se chamava Ruizinho. Na altura pensei que um escritor chamado Ruizinho só podia ser autor de livros infantis. O meu equívoco durou uma ou duas semanas. Ainda assim, tantos anos depois, de alguma forma fazia todo o sentido ter o Ruizinho a apresentar o meu novo livro para crianças.

Eu e o João Lemos falámos sobretudo sobre o processo de trabalho neste livro. Já o disse antes por estas paragens: a colaboração entre o escritor e o ilustrador tem de ser total. Em muitos livros ilustrados que são publicados, os dois autores nunca trocaram mais do que um ou dois breves e-mails. Isso é uma loucura, é uma falta de respeito pelo livro e pelos leitores. A comunicação entre mim e o João foi constante e todas as decisões importantes foram tomadas a duas vozes. Até ao final do trabalho. Uma vez, uma ilustradora disse-me que não deixava que o escritor se metesse nas ilustrações porque ela também não se tinha metido na escrita. Eu percebo isso, mas é uma premissa falsa. Porque na realidade o texto deve meter-se na ilustração e a ilustração deve meter-se no texto. Neste livro, o processo foi o mais habitual: eu escrevi o texto, depois o João Lemos ilustrou. E nesse ponto, fizemos algo nada habitual: eu revi o texto e cortei ou reescrevi algumas frases, já tendo em conta a parte visual da história. E fica feito o aviso: não volto a trabalhar de outra forma.

Para terminar, deixo aqui as primeiras quadras do livro (não é um poema, mas o texto está estruturado em grupos de quatro linhas), pode ser que depois vos apeteça ler mais.


Ao fundo da nossa rua, depois de todas as casas, depois de todas as árvores,
depois do campo de ervas altas e do ribeiro de água gelada,
há um muro. E atrás do muro, há um casarão,
velho e abandonado, torto e escuro, onde ninguém vive.

Todas as tardes, quando regresso da escola, passo ao lado do muro.
E não gosto. Porque tenho um bocadinho de medo do casarão.
Se não fosse o muro teria muuuuuito medo do casarão.
Seja como for, uma tarde, estava uma mala em cima do muro.

Era uma mala pequena, com a pele gasta e uma fechadura ferrugenta.
Tentei abri-la, claro, mas sem a chave respectiva não fui capaz.
Sacudi-a e pareceu-me vazia. E nesse momento tive uma ideia.
Eu ia usar a mala para meter medo ao meu irmão.

Dragões e ladrões, tempestades, aranhas e leões:
o meu irmão não tem medo de nada.
E ele só tem cinco anos.
(Eu tenho nove. E assusto-me com tudo.)

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Os meus pulmões, A MALA ASSOMBRADA e autores portugueses

Estou sentado no sofá. Tenho um chá bem quente ao lado, uma pastilha para as dores de garganta debaixo da língua e uma manta em cima das pernas. Estou assim há nove dias. Primeiro pensei que fosse uma alergia (já aconteceu antes), depois pensei que fosse uma gripe (já aconteceu antes), depois pensei que fosse uma gripe muito forte (também já aconteceu antes). A medicação tem sido adaptada com prudência às diferentes possibilidades. Contas por alto, no total tomei uns quarenta comprimidos. O meu estado é exactamente igual ao do primeiro dia: nem melhor, nem pior. Tenho a sorte de as escolas estarem encerradas para férias da Páscoa e de ter a digressão suspensa por duas semanas.

Só para dar final a este episódio (mas não há minha convalescença), digo que hoje estive no hospital: infecção pulmonar: antibiótico.

(Nota: Espero que tenha sido a última vez que dei uma entrevista ao telefone na sala de espera das urgências. Para que conste, interrompi uma resposta para fazer uma radiografia e depois retomei.)

...

Aproveito para relembrar que é amanhã (19 de Abril), às 18:30, o lançamento de A MALA ASSOMBRADA. Na livraria Bertrand do Picoas Plaza. Com apresentação do Rui Zink.



Apareçam. Tragam a criançada.

...

Quarta-feira vou estar na livraria Bulhosa de Campo de Ourique, à conversa com o Pedro Vieira, o Afonso Cruz e o João Tordo, sobre novos autores portugueses. Com moderação de Sérgio Lavos.



Apareçam. Tragam a criançada, se for criançada dada a coisas sobre novos autores portugueses.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

DEIXEM FALAR AS PEDRAS 8

Aqui fica um apanhado daquilo que se disse (e também do que tenho eu dito) na imprensa sobre DEIXEM FALAR AS PEDRAS.

Para além da crítica da Sara Figueiredo Costa, na Time Out, que já deixei aqui, há entrevistas:

no Jornal de Letras. Podem ler aqui, no blog A Volta do Parafuso, do jornalista do JL, Luís Ricardo Duarte.

no programa Câmara Clara diário, na RTP2. Vejam aqui, a partir dos 2:50 minutos.

no programa Ensaio Geral, da Maria João Costa, na Rádio Renascença, aos 8 minutos de programa. Oiçam aqui.

no programa À Volta dos Livros, da Ana Aranha, na Antena 1, aqui.

O Tito Couto sugeriu o romance, na sua rubrica «Muito Mais do que Livros», do programa Porto Alive, do Canal Porto, aqui (aos 3,50 minutos)

Os jornais Nova Aliança e Abarca fizeram reportagens sobre o dia em que visitei as escolas de Abrantes, onde falei para mais de 600 alunos, assinei mais de 150 livros e li, pela primeira vez em público, A MALA ASSOMBRADA. Nos dois artigos fala-se de DEIXEM FALAR AS PEDRAS.

Depois, apareceram referências, curtas ou extensas, ao romance, na Caras, na Focus, no Destak, no Correio do Minho, n'A Bola (uma estreia nos desportivos!), e no Fórum do Vale do Sousa (onde se faz um prognóstico simpático mas por enquanto disparatado).

Disseram-me que no programa Nada de Cultura, na TV24, o Miguel Real (que era convidado), recomendou a leitura de DEIXEM FALAR AS PEDRAS, o que me deixa feliz.

Espero que não fique por aqui. No entanto, se ficar, já me sinto de barriga cheia. Um grande abraço de gratidão a todos os que prestaram atenção ao meu livro.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Lançamento de A MALA ASSOMBRADA

É no dia 19 de Abril. Às 18:30. Na Bertrand do Centro Comercial Picoas Plaza. Com apresentação do Rui Zink.

Aqui fica o convite (oficial).

segunda-feira, 11 de abril de 2011

E agora A MALA ASSOMBRADA

DEIXEM FALAR AS PEDRAS está nas livrarias, foi lançado, etc. Ainda não foi tudo dito ou feito, mas por agora vou afastar-me, deixar espaço para que se aproximem do livro, para que o leiam.

É hora de falar sobre A MALA ASSOMBRADA. O livro está pronto, tenho-o aqui ao pé de mim e só por isso sou mais feliz.

Antes de mais, a capa:



O livro estará à venda nas livrarias a partir de 19 de Abril. E nesse mesmo dia haverá uma sessão de lançamento, com apresentação do Rui Zink (deixarei aqui mais informação nos próximos dias).

sexta-feira, 8 de abril de 2011

DEIXEM FALAR AS PEDRAS 7

Ontem, durante o dia, várias pessoas, de viva voz ou por sms, me perguntaram: Estás nervoso? Eu não estava.


Eu estava nervoso quando pensei pela primeira vez em escrever o meu segundo romance, estava nervoso quando o primeiro capítulo ficou pronto e eu percebi que não sabia o que fazer depois, estava nervoso quando descobri o que fazer depois, estava nervoso quando a frase "Deixem falar as pedras" se levantou mais alto entre outras frases nas minha cabeça, estava nervoso quando o livro ficou escrito e começaram as revisões, os cortes, os acrescentos, e estava nervoso no momento em que decidi que já não eram necessários mais cortes e acrescentos. Mas ontem não estava nervoso. Ontem era dia de celebração, não havia motivos para estar nervoso.


Veio gente, amigos, família, amigos de amigos, professores de escolas que já visitei, leitores cujo único ponto de ligação comigo são os livros que escrevi. Sentei-me. Ao meu lado direito, estava a Maria do Rosário Pedreira, a minha editora, e só por isso senti-me mais confiante no meu lugar diante de várias dezenas de pessoas. (Quero muito contar a minha história com a Rosário, mas não agora.) Ao meu lado esquerdo, estava o Mário de Carvalho, o narrador (como me habituei a chamá-lo em silêncio), generoso nas suas palavras acerca do meu romance.


Senti-me feliz, no meio de tantas pessoas de quem gosto tanto. Senti-me mais feliz por vê-las com o meu livro nas mãos. Obrigado a todos os que apareceram, aos que enviaram mensagens e àqueles que, no seu silêncio, pensaram em mim.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Os loucos na Madeira

Há uns meses eles disseram-me: «Vamos organizar um festival literário no Funchal.» E eu pensei: Que loucos. Mas com admiração e estima, porque eu até gosto muito de loucos. E depois eles disseram-me: «E tu estás convidado.» E eu pensei: Que simpáticos, querem partilhar a sua loucura comigo.


No entanto, a verdade é que o primeiro Festival Literário da Madeira não era uma loucura. Houve sessões em que escritores debatiam temas, houve pessoas (às vezes casa cheia) sentadas a assistir, algumas, sem temor, lançavam perguntas, houve livros à venda (vários autores viram os esgotarem), houve jornalistas a acompanhar o evento com microfones, máquinas fotográficas, câmaras, computadores, houve visitas a escolas, houve sessões de autógrafos, houve uma organização eficiente e competente, houve momentos de descontracção entre autores e jornalistas e público. Como se não fosse o primeiro Festival Literário da Madeira, mas o quinto, ou o décimo segundo.


E ainda assim eu conheço os loucos que estiveram por trás de tudo - a consultora Booktailors e a editora Nova Delphi - e sei que o quinto Festival Literário da Madeira não será nada disto: será muito mais, algo que não sou capaz de imaginar, porque não sou tão louco como eles, apenas gozo o privilégio de partilhar da sua loucura.

DEIXEM FALAR AS PEDRAS 6

Na Time Out, a Sara Figueiredo Costa escreveu assim:


Quando se vêem as frases riscadas a marcador preto na capa, não se estranha. Mas quando, na página 16, surge a primeira rasura no próprio texto, percebe-se que o marcador preto não é só adorno, mas antes um signo para decifrar no próprio romance. Só mais à frente se perceberá que essas rasuras estão profundamente ligadas à ideia de mexer no passado, de o recuperar como memória e de lhe dar a forma de uma verdade pronta para entregar ao futuro.


E é essa a matéria de que David Machado se socorre para construir uma narrativa labiríntica, comovente e cheia de uma força que deve tanto à habilidade do narrador como à sua dedicação ao gesto de contar.


Às coisas importantes na vida de um adolescente, ou seja, miúdas (neste caso), música inaudível e roupa pouco amiga do ambiente, Valdemar juntará a presença do avô, Nicolau Manuel, que foi obrigado a instalar-se na casa do filho depois de ter sido encontrado, sozinho e com poucas capacidades, na casa da aldeia. A história da vida do avô, tão rocambolesca que se torna verosímil, alimentará Valdemar com a mesma intensidade que os primeiros beijos molhados com Alice, sua vizinha, e tornará avô e neto cúmplices de uma vingança que remonta à juventude de Nicolau e a um casamento que não chegou a acontecer. A passagem pelas prisões do salazarismo, o envolvimento forçado com a clandestinidade comunista e uma série interminável de azares que talvez não tenham sido só azares, mas armadilhas bem montadas, cruzam-se nas histórias contadas por Nicolau ao seu neto e por este narradas num caderno. E se essa trama principal, quebrada por várias digressões, tem força suficiente para sustentar um romance, a reflexão que a acompanha, sobre verdade e verosimilhança, sobre a memória e a sua perenidade, faz de Deixem Falar as Pedras um presságio, capaz de confirmar que a narrativa de uma história é a única condição para que esta se torne verdadeira.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Da Madeira

(Não sei o que se passou com o post que escrevi no sábado: desapareceu nas engrenagens bem oleadas do intitulado ciberespaço. De modo que aqui se repete.)



No sábado, por volta das 6.00, na 3ª mesa do Festival Literário da Madeira, quando chegou a minha vez de falar sobre Escritores Inconstantes, li o seguinte texto, com todas as suas palavras e virgulas.



Eu tinha uma ideia e não sabia o que fazer com ela. Acontece-me com alguma frequência. Era a história de um assassino em série que acrescentava à sua psicopatia a obsessão de matar alguém uma vez por mês, sempre à primeira hora do primeiro dia de cada mês. Não era tanto uma história, mas a premissa para uma história à qual eu não sabia dar continuidade, sobretudo porque não leio tantos policiais como deveria. De modo que eu tinha uma ideia mas faltava-lhe qualquer coisa.


Depois, um dia, o escritor João Tordo disse-me: «Vamos escrever um livro os dois.» Possivelmente estava bêbado, de outra forma não o teria dito. Eu disse: «Está bem.» Ele perguntou: «Tens alguma ideia?» Assim, sem mais nem menos, como se na vida real um escritor contasse as suas ideias a outro escritor. Ainda assim, lembrei-me imediatamente do assassino obstinado com os seus assassinatos mensais. Tive a certeza de que o escritor João Tordo saberia o que fazer com essa ideia e, talvez por isso mesmo, continuei calado. Ele ficou à espera, rangeu os dentes duas ou três vezes e eu comecei a contar a minha ideia. O João Tordo ouviu-me em silêncio e depois continuou em silêncio durante muito tempo. Por fim, deu dois goles no copo que tinha à frente e riu-se muito alto. Disse: «Essa ideia é boa, mas falta-lhe qualquer coisa.» Porque, mesmo às três da manhã, o escritor João Tordo é muito perspicaz. Eu disse: «João Tordo, se sabes fazer melhor dispara.» Ele bebeu o que restava no copo, devagar, para ganhar tempo. Eu rangi os dentes, mas isso não teve qualquer efeito no escritor João Tordo, porque eu não sei ranger os dentes como ele. Quando o silêncio começava a encher demasiado o espaço entre nós, ele disse: «E se, num mês qualquer, por exemplo, Abril, por alguma razão, esse assassino se visse impedido de matar a sua vítima no primeiro dia do mês? E se, por força de circunstâncias que ainda desconhecemos, ele se visse obrigado a adiar o crime para o dia 2 de Abril? E se esse pequeno abalo na ordem da sua vida o levasse a questionar tudo, até mesmo a sua natureza de assassino?» Ele ia continuar a falar mas eu interrompi-o e apenas disse: «Vamos escrever esse livro os dois.» Por essa altura eu também já estava bêbado, claro. Alinhámos ali mesmo o plano de trabalho. Eu escreveria o capítulo inicial e a partir daí escreveríamos capítulos alternadamente, sem qualquer obrigação de decidirmos em conjunto os avanços da narrativa a não ser em questões de fundo. Brindámos. Os nossos copos chocaram, o meu escorregou-me da mão e partiu-se no chão.


Três dias depois o João Tordo ligou-me. Disse: «Falei com um editor sobre o nosso livro. Aliás, sobre os nossos livros. Ele quer publicar uma série sobre o nosso metódico assassino.» A ideia do editor era publicar um livro por mês, sempre no primeiro dia de cada mês, durante um ano. Doze narrativas sobre doze mortes. No quarto livro, o nosso assassino sofreria o seu desaire e apenas conseguiria matar no dia 2 desse mês e esse livro seria publicado também no dia 2. Eu gostei logo da ideia, porque gosto de encontrar lógica numérica no que quer que seja. O João Tordo acrescentou: «As histórias têm de ser curtas.» Eu senti-me levitar e disse: «120 páginas. Exactamente 120 páginas cada.» O João Tordo ia dizer qualquer coisa, mas eu continuei: «Doze capítulos por livro. Dez páginas por capítulo. Exactamente dez páginas por capítulo.» O João Tordo balbuciou: «Está bem. O editor quer publicar o primeiro livro daqui a três meses. Envia-me o primeiro capítulo ainda hoje.»


Uma semana mais tarde, ele ligou-me. Queria saber porque razão ainda não lhe tinha enviado o primeiro capítulo. Eu perdi-me num labirinto de rodeios. Depois ouvi o escritor João Tordo ranger os dentes do outro lado da ligação e não encontrei outra solução a não ser contar-lhe sobre o meu problema crónico com os primeiros capítulos. A verdade é que, em todos os romances que escrevo, acabo sempre a gastar tantas páginas em versões sucessivas do primeiro capítulo como com o resto do livro. Ele só disse: «Esquece. Eu escrevo o primeiro capítulo. Ou então o livro não está pronto este ano.»


No dia seguinte recebi um e-mail com o primeiro capítulo. Pareceu-me um bom primeiro capítulo, mas havia um problema evidente. Liguei ao João Tordo. Disse-lhe: «Este não é o teu estilo.» «E depois?», perguntou ele. «E depois as pessoas estão habituadas ao teu estilo e agora, de repente, afastas-te das tuas palavras.» O João Tordo soprou: «David Machado, as pessoas também estão habituadas a ver-te sem óculos e, no entanto, olha para ti neste momento, a ler este texto, à frente destas pessoas.» Ele não estava a fazer qualquer sentido. Eu repeti: «Mas é o teu estilo.» E então, nesse momento, o escritor João Tordo blasfemou: «Que se lixe o estilo.» A conversa ficou por ali, claro.


Nas semanas seguintes encontrámos um ritmo certo para o trabalho, a uma média de três capítulos por semana: eu escrevia um capítulo em três dias, depois o escritor João Tordo escrevia um capítulo num dia e por fim eu escrevia um capítulo em dois dias, ao sétimo dia descansávamos.


Quando chegámos ao fim do livro, fomos ler o que tínhamos escrito. À primeira leitura, percebi imediatamente o problema com os capítulos que eu tinha escrito. O escritor João Tordo também percebeu. Disse-me: «Os capítulos 2, 6 e 8 são bons. Mas os capítulos 4 e 10 são uma ameaça ao bom nome da literatura.» Eu expliquei-lhe que nos dias em que escrevera os capítulos 4 e 10 não tinha comprado o jornal e que, por isso mesmo, não tinha sudokus em casa. O João Tordo disse: «O quê» Eu respondi: «Toda a gente sabe da minha necessidade de fazer um sudoku matinal antes de começar a trabalhar. As palavras saem-me com outro ímpeto.» Ele revirou os olhos e eu vi a paciência a escapar-lhe pelas córneas.


As revisões levaram-nos quase duas semanas. No final, feitas as contas, demorámos mais um mês do que o previsto para escrever aquele primeiro livro. Eu disse: «Não vamos conseguir publicar um livro por mês.» O João Tordo pensou uns segundos e depois sugeriu: «Podíamos publicar de dois em dois meses. Eu disse: «Nesse caso, o assassino da nossa história terá de matar alguém de dois em dois meses.» O João Tordo deitou as mãos à cabeça e depois de meio segundo de ponderação disse: «Esquece. É melhor não escrevermos um livro juntos.»


Há três dias liguei ao João Tordo. Disse-lhe: «Escrevi um texto sobre o livro que escrevemos juntos.» Ele respondeu: «Nós não escrevemos nenhum livro juntos.» «Eu sei», disse eu. «Mas tinha de escrever um texto sobre escritores inconstantes para apresentar no Funchal e foi o que me veio à cabeça.» Ele pediu-me que lesse o texto, este texto, e eu li. Ele só disse: «Vou pensar no assunto.»


Ontem à noite, ele ligou-me. Deu-me autorização para ler o texto em público. Antes de desligar acrescentou: «Tenho estado a pensar nessa história do assassino que mata no primeiro dia de cada mês. Talvez pudéssemos mesmo escrever esse livro os dois.» Eu deitei as mãos à cabeça e depois meio segundo de ponderação respondi: «Esquece. Não é boa ideia.»